A Igreja Segundo as Escrituras.
Tradução:
João Ricardo Ferreira de França.
J.C.Ryle
O conceito de igreja é básico para uma compreensão adequada do
cristianismo. Se não for bíblico o fundamento sobre o qual se descansa a noção
de igreja, facilmente se incorrerá, como assim tem demonstrado a história do
cristianismo, em certos erros doutrinários de lamentáveis conseqüências.
Justificada é, pois, nossa asserção de que, uma boa parte das diferenças que
nos separam de Roma, se originam em uma noção distinta do conceito de igreja.
Como veremos adiante, as Escrituras nos apresentam um conceito da Igreja sob
diferentes aspectos. Estes aspectos, tomados unitariamente e em sua vinculação
própria, colocam de forma clara a natureza e o caráter da Igreja de Jesus Cristo.
A Igreja Invisível e visível.
Sob
esta designação de visível e invisível não estamos nos referindo a duas
igrejas distintas. Cristo fundou uma só Igreja; mas segundo os ensinamentos da
Santa Palavra, a Igreja exibe um caráter duplo: por um lado é invisível, a
saber, ela escapa e vai muito além do que é sensível; por outro lado, a Igreja
de Cristo se exterioriza em agrupações e congregações visíveis ao olho humano.
Segundo um polemista católico romano Bossuet, a noção de igreja invisível e
visível é uma invenção protestante.[1]Porém,
na realidade este conceito está baseado e tem um fundamento na Palavra de Deus.
Uma e outra vez os profetas do Antigo Testamento lembram ao povo judeu que, o
simples fato de pertencer ao Israel
Visível, isto não era prova suficiente de que eram membros do Israel de Deus –
do Israel espiritual, invisível. Dentro do Israel Visível os profetas fazem
distinção e nos falam de um remanescente espiritual (Esdras 9.8; Isaías 1.9;
20.21; Jeremias 23.3; Ezequiel 6.8). O profeta Elias acreditava que toda a
nação de Israel havia apostatado, e que somente ele havia se mantido nos
caminhos do Deus verdadeiro; mas o Senhor lhe revelou que, todavia ainda
restavam sete mil israelitas que não haviam dobrado seus joelhos a Baal; estes
além de serem cidadãos do Israel terrestre, eram também cidadãos do Israel
espiritual, invisível. A mesma idéia encontramos no apóstolo Paulo quando
disse: “Porque não é judeu que o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a
que é somente da carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, a
circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo
louvor não procede dos homens, mas de Deus”(Romanos 2.28-29). O próprio Senhor
Jesus se referia a esta dupla distinção
entre os israelitas quando contestou os fariseus que se orgulhavam de
ser filhos de Abraão( João 8.37,39,44 ). Havia, pois, judeus que pertencia m a
Israel como nação visível, em conseqüência, eram filhos de Abraão segundo a
carne, os quais, além do mais, pertenciam ao Israel de Deus – espiritual e
invisível. Porém, por outro lado, a maioria do povo judeu, ainda que sendo
cidadãos de Israel, e descendentes de Abraão, não pertenciam ao Israel de Deus.
A Igreja de Cristo se identifica com o Israel de Deus, e nos oferece também um
aspecto visível, e outro invisível. Os verdadeiros filhos de Deus, além de ter
sua membresia em alguma igreja visível, formam parte do corpo místico de Cristo
que é a Igreja Invisível. Os hipócritas e os falsos convertidos, e muitos
outros que de uma maneira externa professam a fé evangélica, e se ajuntam ao
número dos crentes, só externamente são membros da Igreja de Cristo, e
unicamente no aspecto visível da mesma. Estes são os que no dia do juízo dirão:
“... Senhor, Senhor! Porventura, não temos profetizado em teu nome, e em teu
nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?” Porém
aos tais ele dirá: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a
iniqüidade”.(Mateus 7.22-23).
A Igreja Invisível.
O conjunto de todos os crentes, na terra e no céu, redimidos com o
sangue precioso de Cristo, e unidos espiritualmente a Ele, constituem a Igreja
Invisível. Chama-se invisível por sua natureza espiritual – que escapa e vai
muito mais além dos sentidos; e também por não se poder determinar
estreitamente, apartir de um ponto de vista humano, quem são aqueles que
pertencem a mesma. A união dos crentes com Cristo é uma união mística. Os laços
com os quais o Espírito Santo estabelece essa união são invisíveis. A
totalidade dos que formam a Igreja Invisível não cai dentro da percepção do
olho humano; muitos de seus membros não podem ser já vistos, pois estão no céu;
eles são os que constituem a hoste vitoriosa da chamada Igreja
Triunfante. Muitos
outros membros da Igreja Invisível estão espalhados pela terra; alguns talvez
perdidos pelos desertos, pelos montes, pelas covas, e pelas cavernas da terra –
desprezados e ignorados pelos homens, porém, escolhidos e amados por Cristo.
Ah! Não pode a visão do homem abarcar o glorioso panorama do Corpo de Cristo: A
Igreja Invisível.
Esta é a Igreja da qual o mesmo
Senhor disse: “E as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Pelo
testemunho da história sabemos que muitas igrejas locais que se afastaram da fé
e tem caído em completa apostasia, as portas destas fecharam. Mas a promessa do
Senhor Jesus não se refere diretamente a congregações locais visíveis, e sim a
Igreja Invisível – corpo dos redimidos que pertencem a Cristo, sem distinção de
tempo nem lugar.
A Igreja Invisível mantém uma íntima relação com Cristo. No Novo
Testamento esta relação é expressa sob diversas analogias. Em sua epístola aos
Éfesios, Paulo designa a Igreja como a
Esposa de Cristo. Porém, de todas as analogias, a que mais expressa vivamente a
união mística entre Cristo e a sua Igreja, é aquela do corpo humano e a cabeça.
Daí Paulo recorrer a ela tantas vezes, e que em suas epístolas desenvolve tão
amplamente a relação espiritual entre Cristo – a Cabeça, e a Igreja – o Corpo.
Esta união mística não se estabelece por meio de uma hierarquia eclesiástica
visível, mas é fruto da maravilhosa obra do Espírito Santo: “Porque, assim como
o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem
um só corpo, assim com respeito a Cristo. Pois, em um só Espírito, todos nós
fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer
livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito”.(1 Coríntios 12.12-13).
Cristo é a cabeça deste corpo místico que é a Igreja: “E é a cabeça do
corpo que é a Igreja”.(Veja Éfesios 1.22-23; 4.4,16; 5.23,30). Vemos nestes
versículos, que o corpo recebe vida da cabeça; assim como os ramos vida da
videira, do mesmo modo a Igreja recebe vida de Cristo; da mesma maneira como os
membros do corpo obedecem a cabeça, assim a igreja obedece a Cristo; da mesma
forma como a união entre o corpo e a cabeça é uma união vital, assim também a
Igreja está vitalmente unida a Cristo. As Escrituras uma e outra vez coloca em
relevo o caráter espiritual da Igreja de Cristo; os outros aspectos da Igreja
fundamentam-se neste caráter espiritual e invisível. A mente carnal é cega à
esta natureza espiritual da Igreja, e a concebe segundo os esquemas de uma
organização eclesiás tica visível.
A Igreja Visível.
Sob este aspecto a Igreja compreende a todos aqueles que ante os olhos
do mundo professam a fé cristã, e observam os mandamentos e ordenanças
promulgadas por Cristo. Assim como a Igreja Invisível está constituída
unicamente por redimidos por Cristo, a Igreja Visível, além dos crentes, inclui
homens e mulheres que de uma maneira externa professam a fé evangélica. Tanto a
Bíblia como as experiências provam que no seio da Igreja Visível tem se
ocultado homens não salvos. Em certas ocasiões nem ainda os apóstolos podiam
impedi-los, é somente Deus que pode ler os corações.
Na Palavra de Deus encontramos repedidas alusões a este aspecto visível
da Igreja. Nos Atos dos Apóstolos o evangelista Lucas se refere a ela com as
seguintes: “E o Senhor acrescentava dia-a-dia à Igreja os que iam sendo salvos”.(Atos
2.47). Escrevendo aos corintios o apóstolo fez menção da provisão ministerial e
governativa com a que Cristo tem dotado a Igreja Visível: “E a uns pôs Deus na
Igreja, primeiramente apóstolos, depois profetas, em terceiro lugar doutores e
mestres; dons de curar, misericórdias, governos, variedades de
línguas”.(1Coríntios 12.28). Os ofícios e ordenanças que são detalhados aqui
implicam em uma estrutura social externa e visível.
Temos dito que a Igreja em seu aspecto visível não está formada de uma
membresia única – tal como acontece com
a Igreja Invisível constituída por todos os redimidos - , mas que abriga
em sua comunhão, além dos crentes, grande número de pessoas externamente
professa a fé evangélica mas que na realidade não são salvos. Este fato se
aprecia muito bem em algumas parábolas de nosso Senhor. Sob o título “reino dos
céus” o Senhor se refere a Igreja Visível, e assim, nos diz em Mateus 13.47-49:
“O reino dos céus é semelhante a uma rede, que é lançada no mar, colhe de todas
as sortes de peixes. E quando está cheia, os pescadores arrastam-na para a
praia e, assentados, escolhem os bons para os cestos e os ruins deitam fora”. A
separação entre os bons e os maus terá lugar no fim do mundo. A mesma idéia de
coexistência de pessoas salvas e não salvas na igreja visível se nos apresenta
na parábola daquele homem que semeia a boa semente no campo, mas “dormindo seus
guardas, veio o seu inimigo, e semeou joio no meio do trigo”. No tempo da
colheita, a saber, no fim do mundo, se fará separação entre o joio e o trigo –
entre os crentes e os hipócritas -. A relação que existe entre a videira e os
ramos, e que o próprio Senhor Jesus nos menciona, põe ainda mais em relevo o
que já vimos, dizendo: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador. Todo
ramo que, estando em mim, não dar fruto, ele o corta; e todo o que dá fruto ele
o limpa, para que produza mais fruto
ainda.”
“Eu sou a videira, vós os ramos... o que em mim não estiver será lançado
fora como mau ramo” João 15. O
verdadeiro crente, qual ramos unidos à videira, mantém uma união espiritual com
Cristo e, em conseqüência disso, produzem frutos. Mas os hipócritas, aqueles
que não são salvos, e que, no entanto, filiam-se a membresia da Igreja Visível,
por manter somente uma relação externa com Cristo, semelhante aos ramos que não
estão unidos a videira, serão lançados fora.
A Igreja Invisível mantém, com respeito
a seus membros, uma relação íntima e espiritual com Cristo; enquanto que a
Igreja, em seu aspecto visível, mantém uma relação externa. No caso dos crentes
verdadeiros, esta relação externa é expressão visível daquela íntima relação
espiritual que lhes une a Cristo. A Igreja Invisível está constituída,
unicamente, pelos redimidos; enquanto que a Igreja Visível está formada por
aqueles que externa e visivelmente confessam a Cristo, e pode incluir, além dos
crentes verdadeiros, pessoas não são salvas.
Estes dois aspectos – visível e invisível -,
sob os quais se nos apresenta a Igreja nas Escrituras, são básicos para uma
compreensão bíblica da natureza da Igreja. Eles são, além do mais, os que
colocam de forma bastante clara os erros da concepção romanista de Igreja. A
Igreja Católica Romana atribui à Igreja Visível grande números das
características que, segundo as Escrituras, só podem ser aplicados à Igreja
Invisível.
A Igreja Católica e Local
A Igreja Local
Com freqüência o termo igreja é
usado nas Escrituras para designar um grupo de crentes em um determinado lugar.
Ainda que seja no caso de que sejam dois ou três crentes que se reúnem para
orar e adorar ao Senhor, o Novo Testamento emprega o termo igreja[2]para
designar os tais. O mesmo acontece com grupos de crentes que, todavia, não
foram organizados sob a supervisão de presbíteros e pastores. Em atos dos
Apóstolos é-nos dito que Paulo e Barnabé “constituíram presbíteros em cada uma
das igrejas” Atos 14.23. O qual
demonstra que, ainda antes de ter presbíteros, tais grupos já se constituíam
verdadeiras igrejas. O apóstolo Paulo reconhece como verdadeira Igreja o grupo de crentes que se reúnem em uma casa
particular, em suas epístolas temos
vários exemplos: “ Saudai a Priscila e Áquila ... do mesmo modo a igreja de sua
casa” Romanos 16.3,5. “Saudai aos irmãos que estão em Laudicéia, e a Ninfas, e
a Igreja que está em sua casa” Colossenses 4.16 (veja-se também 1 Corintios
16.19; Filemon 23).
A Igreja Católica ou Universal.
Temos visto que segundo o Novo Testamento, ainda que seja um pequeno
grupo de crentes que se reúnem em uma casa particular constitui uma igreja.
Agora bem, a igreja local, por menor que seja, mantém uma relação
importantíssima coma as outras igrejas cristãs. O crente, por cima de sua
igreja local, confessa a sua crença em uma Igreja Universal: “Creio na Igreja
Católica”. Como devemos entender esta confissão? Que relação há entre a
congregação local e a Igreja Universal? Em que consiste a universalidade da
Igreja? A universalidade ou catolicidade da Igreja é dupla: Concerne a Igreja
em seu aspecto visível e invisível.
Em seu aspecto invisível.
A igreja é católica pelo fato de não está restringida a nenhuma
limitação de lugar e tempo.[3]Na
dispensação judaica, a igreja não era católica, mas local; seu centro estava em
Jerusalém; ali tinha o seu templo, seu altar, seu sacerdócio. Porém, na nova
dispensação a Igreja desborda toda a limitação local. “A hora vem, e agora é,
quando os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai em espírito e em verdade”.
João 4.23. Em qualquer lugar da terra onde se encontra um crente, ali há um
verdadeiro Templo do Senhor; ali pode Deus ser adorado em Espírito e em
verdade. Desaparece o sacerdócio de Arão com a vinda do Sumo Sacerdote que,
havendo feito a propiciação pelos pecados do povo, agora vive para sempre
interceder por eles. As barreiras da dispensação mosaica foram derrubadas, e a
plenitude do Espírito Santo se derrama sobre a Igreja. É o Espírito Santo quem
estabelece a universalidade da Igreja. A ação unificadora do Espírito Santo faz
desaparecer toda diferença de raça, língua e distância. A comunhão de um mesmo
Espírito faz com que os crentes de todos os lugares e tempos experimentem uma
maravilhosa unidade espiritual em Cristo. É em virtude, pois, dos laços de um
mesmo Espírito, e da participação de uma vida espiritual comum em Cristo, que a
Igreja local se relaciona com o conjunto de todas as igrejas cristãs.
Em seu aspecto visível.
A igreja é católica por quanto todos os seus membros professam a mesma
fé em Cristo. Assim como a Igreja Invisível a universalidade vem determinada
pela participação de um mesmo Espírito, no caso da Igreja Visível a
catolicidade vem determinada pela profissão de uma mesma fé. Por cima das
diferenças de língua, raça, e denominação, as igrejas evangélicas confessam a
mesma fé em Cristo Jesus.
Os evangélicos são acusados a vontade de estarem divididos na doutrina,
e desta forma não exibem a catolicidade da fé; porém, os que assim nos combatem
não param para considerar que o amplo horizonte doutrinário que, por cima das
diferenças denominacionais, une as igrejas evangélicas. Se compararmos os
credos e confissões doutrinárias das denominações evangélicas mais importantes,
se observará uma crença comum nas doutrinas essenciais da fé cristã. Todas
proclamam a autoridade na Bíblia, a Trindade, a Criação, a Queda do homem, a
divindade de Cristo, a Salvação através da Obra de Cristo, a Justificação pela
Fé somente, o Juízo Final, a Realidade do Céu e do Inferno, a Segunda Vinda de
Cristo, etc...Os desacordos e diferenças entre as igrejas evangélicas estão
inseridos naquilo que não impedem a salvação de pecadores. Algumas destas
diferenças devem-se a causas históricas, outras nasceram como resultado de
distintas interpretações e de certas profecias escatológicas; outras provêm de
um triste apego às tradições humanas; porém, mui possivelmente, a maior parte
das diferenças dentro do campo evangélico se devem ao pecado.
O crente evangélico não deve contentar-se pensando que naquilo que se refere
ao coração da mensagem evangélica há universalidade de fé entre as igrejas
evangélicas, mas, antes de tudo, deve orar e fazer tudo o que estiver ao seu
alcance para que a Igreja Visível, ainda que seja nos temas e nos detalhes mais
insignificantes possam revelar a unidade e catolicidade.
[1]
Na realidade o catolicismo romano não nega este aspecto de invisibilidade da
Igreja de Cristo, mas o suprime e faz depender do aspecto visível. “Primeiro
está a Igreja Visível, e logo vem a Invisível”. Desta crença surgem as tristes
conclusões da Teologia Católica com respeito
a natureza da Igreja. Ao aspecto visível Roma aplica notas e características
que são próprias do aspecto invisível da Igreja.
[2]
Nota do
Tradutor: O termo Igreja, no grego nós temos ekklhsia,significa
literalmente “os chamados para fora”, são chamados do mundo para serem
consagrados a Deus.
[3] Nota do Tradutor: Este tem sido o erro da Igreja Católica
Romana, pois, a Igreja não pode ser católica e ao mesmo tempo Romana, tal
postulação é uma contradição de discurso – elimina o conceito de catolicidade
da Igreja de Cristo. Isso porque a Igreja Romana está limitada, em sua
nomenclatura, a uma localidade.